quinta-feira, 23 de junho de 2016

Lágrimas que não secam. E vão virar livro

Dina Soares, 45, vive atualmente em Guimarães, uma cidade portuguesa no Distrito de Braga.  (Foto: acervo pessoal)



Hoje com 45 anos de idade, Dina Soares divide o seu tempo entre trabalhar no salão, onde atua como cabeleireira e esteticista, cuidar do filho, conversar com vítimas de estupro e escrever a sua própria história, no livro que vai receber o título "Lágrimas no Silêncio".

Nesse livro, Dina fala sobre o que passou nas mãos do pai, dos 8 aos 14 anos de idade.

Mais de três décadas se passaram e ela, simplesmente, não consegue esquecer do que aconteceu durante a infância. "É uma ferida aberta".

E porque não consegue se esquecer, resolveu começar a escrever o próprio livro em fevereiro desse ano.

Em 6 de abril, Dina foi a público contar, pela primeira vez, em um programa de televisão em Portugal, o que havia lhe acontecido. Dina é portuguesa. Aquela seria a primeira vez em que, finalmente, ela iria contar a todos a sua história. Mas pediram à Dina que mantivesse sua identidade em anonimato, o que não a agradou muito. Ela quer que saibam quem ela é.

Ela quer berrar bem alto que é uma vítima de estupro porque passou a vida tentando fazer com que alguém lhe escutasse, mas isso nunca aconteceu.

Quando ainda estava na adolescência, Dina chegou a enviar cartas para uma emissora de televisão do Brasil. Ela estava desesperada e queria denunciar os abusos. Queria alguma ajuda internacional que não encontrava em seu país. Mas, isso não aconteceu. Ela nunca obteve respostas.

Em abril, foi à TV porque ela mesma enviou um e-mail para a emissora portuguesa e se dispôs a contar a sua história de abuso. Foi aí que Dina entendeu a importância de tornar a sua vida pública. Agora ela está em fase de enviar o seu livro para as editoras. Ela espera que "Lágrimas no Silêncio" seja publicado.

Mas, antes de escrever esse livro, muitas coisas aconteceram.


Três décadas de silêncio

Dina Soares tinha 8 anos de idade quando foi estuprada pela primeira vez pelo próprio pai, na sala de casa. O homem que ela mais amava e confiava, quem ela achava que estava ali para lhe proteger de tudo, trancou todas as portas e janelas de casa para obrigar a própria filha a colocar a boca em seu pênis. Ele abaixou as calças, mostrou o órgão ereto e agarrou Dina à força. Com a pequena menina em prantos e aos gritos, ele acabou com a infância da filha dessa forma, enquanto a mãe dela estava no trabalho.

A menina não entendia o que estava acontecendo, ela não tinha a menor ideia do que aquilo significava. Quando finalmente conseguiu se livrar das garras de seu abusador naquele dia, Dina saiu correndo, calada, pelas ruas sem rumo, porém não sem antes receber o aviso de seu pai, que disse à ela que a esperava para fazer a mesma coisa no dia seguinte.

Enquanto a garota corria, encontrou um campo no qual havia um riacho com água corrente. Então, ela enfiou a cabeça dentro da água na tentativa de esquecer de tudo. Mas, ela teria que voltar para a casa. E teria que lidar com uma ferida aberta pelo resto da vida,

Dina preocupou-se em contar para a mãe o que havia acontecido naquele dia enquanto ela trabalhava, mas a mulher não acreditou no relato da criança. Ao invés de tentar proteger a filha dos abusos, a mãe disse à criança que aquilo tudo era normal, que acontecia em outras famílias e que ela não tinha tempo para “chorumelas”.

Quando a menina chorava e pedia ajuda da mãe, a mulher avisava que era melhor ela parar de “frescura” ou ia bater muito nela, pois estava cansada depois de trabalhar o dia todo. A mãe de Dina permitia que o estupro continuasse a acontecer dentro de casa. E continuou.

Até completar 14 anos de idade, a menina foi estuprada constantemente pelo pai. Ele chegava em casa e, assim que abria a porta, já ia tirando as calças para violentar a criança. Ele estuprava a menina com a esposa em casa, na hora do banho e em diversos outros momentos.

O pai de Dina era um homem sujo e a lembrança do odor daquela casa permanece viva na memória da mulher que hoje tem 45 anos.

Ele pedia à ela que se lavasse na mesma água que ele tomava banho e dizia à Dina que isso seria uma honra para ela, já que assim ela poderia “aproveitar a energia dele que entrava no corpo dela”. Quando Dina entrava na banheira, havia uma espuma cinzenta, com restos de sabonete. Na maioria das vezes, ele entrava na banheira junto com a filha e obrigava a menina segurar uma bacia, na qual ele urinava. É o cheiro dessa espuma fétida que causa náuseas e embarga a voz de Dina até hoje.

Violentada pelo pai e sem o auxílio da mãe, com 16 anos de idade Dina saiu de casa para se casar o pai de seu primeiro filho. Para ela, essa era a chance de livrar, finalmente, da tortura vivida na casa da família. Mas as lembranças, essas sempre vão acompanhá-la. Mais de 30 anos depois dos episódios de estupro, as memórias estão mais vivas do que nunca em Dina, que apresenta uma série de sequelas causadas pelo trauma na infância.

Desde que resolveu falar sobre o assunto, depois de décadas de silêncio, ela tem pesadelos com o pai. Nesses anos todos, já pensou em suicídio várias vezes, pensa até hoje e desenvolveu uma série de transtornos obsessivos compulsivos (TOC) porque se sente suja. Dina toma banhos longos diversas vezes por dia e sente a necessidade de lavar as mãos de cinco em cinco minutos. Ela não consegue ver uma cena de violência, mesmo que sejam cenas de ficção, sem ter uma crise nervosa.

E é por ter que carregar esse peso que Dina não se cala. Não mais.



terça-feira, 14 de junho de 2016

Nó na garganta

                                                                                                          Foto: cedida por J. A.


*J. A. pediu para que a sua identidade fosse preservada, pois alguns familiares ainda não sabem o que lhe aconteceu durante a infância. Ela se preocupa com a reação dessas pessoas.



I.

Hoje J. tem 29 anos, é fonoaudióloga e trabalha com aparelhos auditivos. O sonho dela é poder ajudar outras pessoas, já que ela própria não teve ajuda quando precisou.

J. tinha 4 anos quando ganhou um irmãozinho. Com a chegada do bebê, a família voltou toda a sua atenção somente para o caçula.

Os pais de J. tinham o hábito de sempre visitar a casa dos avós paternos, que era grande o suficiente para a menininha brincar livremente, sem supervisão alguma.

Nessa casa também morava o irmão mais novo do pai de J., que tinha cerca de 20 anos em 1991. Uma vez ele resolveu chamar a sobrinha de 4 anos para visitar o seu quarto. Ele tinha uma "brincadeira que ela ia gostar".

Esse quarto ficava no fundo de um corredor da grande casa e não tinha porta. No lugar, havia uma cortina de miçangas. Para tornar o local inacessível enquanto estava com a sobrinha, o homem arrastou uma cômoda grande no lugar da porta.

Nesse quarto haviam duas camas de solteiro. A cama dele era a da esquerda, encostada na parede, a qual ele usou para colocar a sobrinha no colo, virada com o rosto para ele, e começou a esfregar a pequena em suas partes.

Ele a esfregava com tanta força que aquilo machucava o corpo de J. Mas, ela nem tinha noção de que o tio estava fazendo isso para se masturbar. Ela nem sabia o que era isso.

Depois disso, a pequena chorava e falava para os pais que não queria ir mais na casa dos avós paternos. Mas, eles não davam ouvidos à J. e continuavam levando a criança até o local. Era só a casa dos avós, que mal poderia ter?

O tio de J. continuou abusando sexualmente da sobrinha de 4 anos por mais um ano, mesmo com ela pedindo para parar. Mesmo com a menina implorando. Mesmo com a criança chorando muito.

"Ele gostava daquilo mesmo quando eu pedia para parar", conta J., com um misto de nojo e medo.

25 anos depois, ela consegue se lembrar com nitidez de como o tio sentia prazer com o seu desespero. O que você se lembra de quando tinha 4 anos?


II.

Era uma brincadeira, ela ia gostar. Era isso que ele dizia.

Certa vez, o tio de J. chegou a convidar um amigo para ir até o quarto ver o que ele fazia com a sobrinha.

Até hoje J. se lembra do rosto desse amigo porque ele olhou para a criança, que estava chorando, e perguntou ao tio dela se aquilo não ia dar problema, se não tinha perigo de a pequena contar tudo.

O tio de J. disse que não, que tava tudo bem. Afinal, ela era "muito pequena". Ele sabia muito bem disso.


III.

Por causa dos abusos, a criança passou a ter medo de qualquer homem, inclusive do próprio pai, que se parecia muito, fisicamente, com o irmão mais novo.

Houve um tempo em que J. praticava karatê e o pai a levava, sozinho, até a cidade onde eram as aulas. Durante o caminho, ela lembra que sentia pavor. Era uma tortura para ela. J. não deixava o pai se aproximar, encostar ou abraçar ela. Até hoje não são muito próximos.


IV.

Outra coisa que aconteceu foi que J. aflorou sexualmente muito cedo. Com 5 ou 6 anos, se masturbava em qualquer lugar. Uma vez apanhou da mãe porque estava se masturbando no ônibus. Outra vez, porque estava enfiando colheres na calcinha. Ela se masturbava até quando a família estava toda na sala. J. passou a ter essa necessidade depois dos abusos.

Com apenas 9 anos, menstruou.

Ela demorou um tempão para entender que tinha sido vítima de abuso sexual.

E quem dera a história de abuso de J. acabasse por aqui.


V.

Quando ela tinha 12 anos, começou a fazer aulas de dança na escola. Aos 14, um dia estava saindo de uma dessas aulas quando encontrou um amigo da família, que a chamou para ir até a casa dele ver a mãe dele. Ela não viu problema algum nisso, afinal, eram pessoas que estavam sempre visitando a sua casa.

Mas, quando J. chegou até o local e chamou pela mulher, ela não obteve respostas. O "amigo" pediu, então, para que ela esperasse na sala.

Quando voltou ao local, esse homem a atacou. Ele a agrediu e tapou a boca de J. à força para conter os gritos.

Esse homem rasgou a meia calça e o collant da bailarina de 14 anos.

Depois de estuprá-la, jogou uma camiseta em cima do seu corpo, ordenou que ela se vestisse e a obrigou a lavar uma almofada do sofá que ficou suja de sangue.

Humilhada e dolorida, J. não tinha opções. Ela fez o que o agressor mandou.

E foi embora.

Em casa, ninguém soube. Ninguém nem desconfiou.


VI.

A menina até tentou desabafar com a mãe e falar sobre o assunto depois de ir em uma consulta no ginecologista dois anos mais tarde. Naquela consulta, a mãe de J. descobrira que ela não era mais virgem. Então, a adolescente tentou contar a mãe o que tinha acontecido. Mas, não houve diálogo. A mãe mudou de semblante quando a filha começou a contar, recomendou que ela esquecesse e nunca mais falou sobre o assunto.

J. fala com mágoa dos pais. Ela passou a vida tentando agradá-los, "mas parece que nada adianta". Os pais dela queriam que ela se casasse e tivesse filhos, mas os relacionamentos de J. nunca duraram o suficiente. Ela desenvolveu uma enorme dificuldade com relacionamentos e, além disso, não pode engravidar porque tem endometriose, uma doença que atingiu as trompas de seu útero.


VII.

Mas, o que mais atingiu a vida de J. foi o silêncio. Por isso hoje ela faz um escândalo.








sábado, 4 de junho de 2016

A história de uma menina de 6 anos que uma vez pediu um absorvente

                                                                                                                             Fotografia: Lucas Moreira



por Juliana Trevisan


Vamos falar sobre silêncio. Vamos falar sobre o que não é falado, que nunca foi citado, sobre o grito entalado e sobre palavras que não sabem como serem ditas. 
Mas, antes, vou contar a história de uma menina de 6 anos que um dia levantou no meio da aula e pediu para a professora um absorvente pois estava menstruada. A professora ficou chocada, não sabia reagir, era impossível uma menina de 6 anos estar menstruada. Meio desconcertada a professora levou a menina para sala da direção.
Quando perguntaram para a menina se ela sabia o que era menstruação, ela respondeu com toda naturalidade do mundo: "claro que sei, é quando sai sangue pela xoxotinha". 

Ao ouvir isso, metade dos funcionários que se encontravam na recepção da diretoria correram para suas salas para não caírem no riso na frente da menina, eles queriam evitar que ela ficasse constrangida. Uma das professoras foi com a menina no banheiro para ver se realmente havia sangue na calcinha, e de fato havia, mas não parecia nada preocupante. 

Ela conversou com a menina e explicou que ela não estava menstruada, que provavelmente ela deveria ter caído ou batido em algum lugar e se machucou. A menina não lembrava de ter se machucado, mas se adultos dizem que é verdade, verdade é. 

A direção do colégio só comentou esse episódio com a mãe 2 semanas depois. 


Essa menina estava pedindo socorro, mas o grito silencioso dela foi ignorado. O pedido de ajuda foi confundido com vontade de ser gente grande. Apostaram na inocência dela e esqueceram da maldade de quem vivia em volta.

Essa menina de 6 anos estava sendo abusada sexualmente pelo pai. 

Quero que você preste atenção na idade dela, SEIS ANOS, e quero que você resgate as suas lembranças nessa idade.

Feito isso, se coloque no lugar dessa criança. Se imagine com 6 anos sendo acariciada pelo papai antes de dormir. Dói, né? 


Mas não dói nem metade do que dói em mim, porque essa história é minha, e eis meu grito entalado. Talvez eu não vá falar sobre o silêncio, o que eu preciso agora é quebrar o silêncio.


Pedofilia existe e pedofilia é silenciosa. Ela acontece quando ninguém vê, ela age em cima do medo e acaba com a cabeça de um ser humano. 


Aprendi tudo errado, tesão é amor, medo é respeito. A negação foi minha maior aliada e a culpa minha guia. Dói, dói na alma, e eu sei que por mais que eu chore essa dor não vai passar. Eu vou me acostumar com ela, mas ela nunca vai passar. Uma vez que você perde o domínio do seu corpo, saber o seu espaço é muito difícil. 

As marcas do abuso são tão profundas que criam "traços de personalidade". Pessoas abusadas se reconhecem. Quem sabe o que isso causa enxerga rapidinho nos outros. 

Eu consigo, depois de uma certa convivência, identificar o abuso em outra pessoa, do mesmo jeito que já identificaram o abuso em mim varias vezes. Somos um clubinho secreto da dor. Somos aqueles que por muito tempo não gritaram. Somos fruto do nosso passado. Somos sobreviventes. 

Mas, eu não estou aqui para chorar as minhas dores.  

Eu quero alertar para algo que acontece e que é difícil de reconhecer. Se naquele dia, na escola, alguém tivesse falado para a minha mãe sobre o ocorrido, ela teria me levado no médico e isso poderia ter me salvado de mais 14 anos nas mãos do meu pai. 

Então, quando se trata de crianças, observe, vá além do lógico. 

Eu gritei por socorro a minha vida toda, mas todos achavam que eu só queria atenção. Eu tinha o que falar, só não sabia como. As crianças demonstram, às vezes de uma maneira não muito nítida, mas demonstram. 


Veja além do óbvio, interprete o que não foi falado.