terça-feira, 15 de novembro de 2016

Os desenhos, pesadelos e a realidade de uma vítima de estupro na infância

A. fez os desenhos nos períodos em que estava sendo estuprada pelo vizinho. (Imagem cedida pela vítima)



A. tem 29 anos e há mais de duas décadas fez desenhos sobre o vizinho. Ela guarda esses rabiscos a sete chaves, em uma sacola que fica escondida embaixo da cama, e nunca mostrou nenhum deles para alguém. Nem para os amigos, nem para a família: ninguém nunca os viu. Com 10 anos de idade, desenhar foi a forma que A. encontrou para "desabafar" sobre os estupros que sofria e ela guarda esses papéis, com cuidado, até hoje.

Quando se deita para dormir, até hoje mulher tem pesadelos com o estuprador. Praticamente todas noites ela tem pesadelos. A seguinte cena invade seus sonhos:


A. está dormindo e acorda com um homem passando as mãos pelo corpo dela. Ele sussurra em seu ouvido e diz que ela é uma pessoa "boa" e "linda". Depois, pede para que ela se levante. Quando ela se levanta, esse homem está pelado. Ele a abraça e começa a beijá-la... Ele faz com que ela, criança, toque no corpo nu dele e depois também toca o corpo dela. 

A seguir, esse homem se senta, coloca ela em seu colo e a estupra. Ele continua sentado, enquanto ela está de pé. Esse cara diz para A. colocar os dedos em sua vagina porque, se ela não fizer isso, ele vai colocar o "brinquedo do tio" (o pênis) dentro dela. Ela atende aos pedidos do homem porque sabe que ele está falando sério e porque sabe o quanto dói quando ele faz isso.

A. também não quer que ele enfie os dedos dele, de novo, em sua vagina. Dói quando ele faz isso e, então, sem opções, ela começa a se masturbar na frente dele até gozar, atendendo ao pedido. Quando o homem nota que ela gozou, ele diz que ela é uma "menina danada" e que suas mãos são mais sujas do que as dele.


A mulher de quase 30 anos acorda em estado de pânico. Não consegue distinguir entre o que é sonho e o que é realidade. Sente medo, desespero e nojo. O homem que sussurava em seu ouvido, no pesadelo, é o cara que ainda mora ao lado da casa dela. Um senhor de setenta e poucos anos que a estuprou pela primeira vez quando A. tinha 10 anos de idade.

Na infância, A. era uma criança carente e sem a atenção dos responsáveis. Por isso, quando o vizinho cinquentão a convidava para ir até a casa dele, ela aceitava. Aquele senhor, "bondoso" e "católico", que nunca faltou na missa de domingo, dizia coisas gentis a ela. A elogiava e dava presentes. Às vezes, dava dinheiro. Com isso, a garota tinha certeza de que estava, finalmente, sendo amada por alguém e continuava frequentando a casa dele.

No entanto, toda vez que A. ia até a residência do vizinho, os estupros se repetiam. O homem quatro décadas mais velho do que ela a beijava. Fazia com que ela passasse as mãos pelo corpo dele. Explorava o corpo dela. Obrigava a garota a colocar a boca em seu pênis. A colocava em seu colo enquanto estava nu e, depois que tinha feito o que queria, procurava uma maneira de comprar o silêncio da criança. 

O agressor sabia que ela não gostava do que ele fazia. Sabia que ela sentia dor quando ele a invadia com seus dedos. Mas sabia, principalmente, como manipular a garota e fazer com que ela não contasse sobre o que acontecia naquela casa. Com 11 anos, A. tinha medo de todos os homens e achava que todos se comportavam da mesma forma que o vizinho. Não sabia o que significava a palavra estupro.



O primeiro desenho que A. fez, em 1998, ano em que o agressor a estuprou pela primeira vez. (Imagem cedida pela vítima)

Desenhos

Com 11 anos de idade, em 1998, A. era violentada frequentemente pelo vizinho. Ela já tinha ódio de si mesma e uma vontade intensa de morrer. A menina odiava aquele homem e a única forma de dizer isso era através dos rabiscos que fazia no papel, pois tinha certeza que se contasse para alguém da família as coisas seriam, ainda, piores.

A garota não podia abrir a boca porque o seu agressor era um homem querido pela vizinhança, pelo pessoal da igreja e pelos membros da própria família. Ele frequentava a casa de A. e, além disso, dizia a criança que ela era a culpada pelo que ele fazia. Por isso, ela decidiu ficar em silêncio e acreditou que merecia tudo o que o estuprador fazia. 

Assim, desenhar foi a única forma que a garota encontrou para contar o que estava acontecendo, embora ninguém nunca tenha prestado atenção em seus rabiscos.


Pesadelos

Desde a infância A. tem pesadelos com o agressor quase todas as noites. Ela vive com medo e aterrorizada, pois ele ainda mora por perto e ela o vê com frequência. Quando isso acontece, o homem ainda a intimida com o olhar malicioso, enquanto a mulher fica enrijecida e sem esboçar qualquer reação - da mesma forma como se comportava quando era criança e estava sendo violentada.

Todos os dias A. se lembra das coisas que aconteceram com ela dos 10 aos 14 anos e sente um misto de tristeza e nojo do próprio corpo. Ensinaram ela a ter ódio de si mesma. Quase vinte anos se passaram e a mulher se comporta como a mesma criança, frágil, assustada de 1998. Às vezes, fica um tempão nua em frente ao espelho buscando por respostas para a pergunta "Por que tinha que ser comigo [os estupros]?"

Não suporta e, por isso, não fala a palavra estupro.

Os pesadelos de A. são, na verdade, as lembranças de um passado que não tem como esquecer.



"Ele", "eu" e "amor": as palavras escritas entre os desenhos que A. fazia sobre o vizinho. (Imagem cedida pela vítima)


Realidade

Os pesadelos noturnos aterrorizam A. até hoje - além da síndrome do pânico, do isolamento social, do Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC) com as mãos, da fobia social, as dificuldades no trabalho (ela é secretária) e a incapacidade de se relacionar com outras pessoas ou simplesmente ter amigos.

Porém, nenhum desses transtornos entristece mais A. do que as lembranças de sua infância:

- A mulher chora desesperada e sente um nojo enorme de si mesma quando lembra que, com 12 anos de idade, abusou sexualmente do próprio primo, que tinha 2 anos. Ela não entende, não aceita e não tem a menor ideia do porquê fez isso. Só se lembra que viu o bebê, sentiu desejo e ódio, e repetiu o que o vizinho fazia com ela. A. colocou a boca no órgão genital do primo e fez com que ele tocasse o corpo dela. Fez isso durante 3 meses e não vai se perdoar nunca por tal comportamento. Ainda sente o desejo enorme de morrer. Não sabe sua função no mundo.

- Quando completou 13 anos de idade, A. continuava sendo violentada sexualmente pelo homem mais velho e ganhou um "presente de aniversário" dele: a penetração. Antes, o agressor a estuprava com os dedos e a boca, além de obrigá-la a se masturbar na sua frente. Mas, ele esperou o dia do aniversário da garota para colocar, a força, o pênis dentro da vagina dela. Por isso, ela odeia a data.

- Meses depois de completar 13, o vizinho não a procurou mais. O corpo de A. estava mudando e ela já não era mais uma criança. Porém, a menina ainda acreditava nas coisas que o homem dizia. Ela ainda acreditava que pelo menos ele era alguém que oferecia "amor" e "carinho", que são coisas que ela jamais teria em casa. Por isso, sentiu-se rejeitada pelo próprio agressor quando ele não se interessou mais por seu corpo. A. achava que aquilo que o agressor dava a ela era amor. Era essa a noção de amor que ela tinha.

- Com 14 anos, quando já não era mais o alvo do vizinho, a adolescente foi estuprada por outro agressor. Ela estava voltando sozinha da igreja quando um funcionário do pai dela a abordou, de caminhão, e ordenou que ela entrasse. O homem levou A. até um terreno baldio e a violentou sexualmente enquanto ela estava jogada no chão de pedra e areia. O estuprador duvidou do Deus da menina católica, zombou da fé dela e, com uma faca, fez um corte em formato de cruz na pele da vítima. Até hoje A. carrega a cruz tatuada na virilha.


Assim como 90% das vítimas de estupro no Brasil, A. nunca denunciou o crime. Nunca contou com o apoio da família ou fez terapia psicológica para trabalhar seus traumas. Nunca teve amigos, namorados ou alguém em quem pudesse confiar. Não conseguiu cursar a universidade porque tem dificuldades em se relacionar com outras pessoas. Nunca fez sexo com consentimento porque tem medo de 100% dos homens. Não come os alimentos que prepara porque tem nojo das mãos. Mas alguma fé em alguma coisa fez com que ela abrisse a sua história. 

A. só topou contar sobre a sua infância para este blog porque acredita que, quebrando o silêncio, pode contribuir para que outras crianças não sejam vítimas de estupro.