sábado, 30 de julho de 2016

A carta de um estuprador*

                                 Imagem: Free Stock Photos- Dreamstime.com

*O título poderia ser "A carta de um pedófilo", mas acontece que a pedofilia é uma doença e o estupro de vulnerável um crime hediondo. E aqui falamos da carta de um criminoso.



A vítima é Tereza**, uma bonita jovem negra de 22 anos, que mora no Rio de Janeiro, formou-se há pouquíssimo tempo em psicologia e gosta de curtir a vida como a maioria das garotas da sua idade. O agressor é um homem que foi o seu padrasto durante a infância.

Ela tinha 4 ou 5 anos - não consegue se lembrar com exatidão - quando a mãe foi morar com esse homem e a levou, junto com o seu irmão mais novo, para morar com o casal. Tereza lembra que o casal sempre teve uma relação "muito conturbada". 

O padrasto bebia muito e sua mãe era vítima de violência doméstica. Como esses episódios violentos aconteciam com bastante frequência, Tereza se lembra bem de diversas coisas que aconteceram há mais de uma década.

Certa vez o padrasto sacou uma arma e atirou contra a sua mãe e só não acertou porque a mulher conseguiu se abaixar. Quando isso aconteceu, Tereza tinha 6 anos e se lembra que a mãe pediu para que ela e o irmão não contassem nada a ninguém. As duas crianças sempre estavam presentes nesses episódios de violência.

Amedrontados por ver a mãe sendo agredida pelo padrasto, os irmãos tinham medo que o agressor machucasse ainda mais a mulher e que também os machucasse, caso contassem sobre o que acontecia em casa. Atenderam ao pedido da mãe.

Tereza tinha os mesmos 6 anos quando esse padrasto começou a estuprá-la. Na maioria das vezes, ele estava bêbado, passava as mãos pelo corpo e pelas partes íntimas dela e a obrigava a fazer sexo oral nele.  Por duas vezes houve penetração anal e a primeira vez que isso aconteceu Tereza tinha 8 anos de idade. 

"Lembro que gritei e comecei a chorar... ele tampou a minha boca para que eu ficasse quieta. Ele não conversava comigo durante a cena e nem após. Nunca me pediu para que eu não contasse nada pra ninguém".

Na época, ela não tinha noção do que o padrasto estava fazendo, mas ficava com medo de contar para a mãe e o casal brigar ainda mais. Tereza tinha medo de falar porque achava que o agressor poderia matar a mãe, o irmão ou ela.

"Por isso acho que de alguma forma eu permitia que isso acontecesse, para que não houvesse mais brigas...", diz.


A carta

Certa vez, o padrasto de Tereza escreveu uma carta para ela. 

Naquele papel, o estuprador contava para a menina sobre o desejo que ele tinha de penetrar a sua "linda b*cetinha" [sic] e que ele só não poderia fazer isso por um motivo, que Tereza não se lembra qual era.

Na mesma carta, o estuprador ainda dizia que a criança "também desejava aquilo".

Quando Tereza começou a menstruar e a ter pêlos pubianos, com 12 anos, os estupros se tornaram cada vez mais raros. Pouco tempo depois, o padrasto e a mãe se separaram.

A mãe nunca soube das agressões e dos estupros cometidos pelo marido. Ela trabalhava muito durante o dia e estudava no período da noite. Seu tempo em casa era curto.


Nas mãos de outro agressor

Depois de se separar do homem que violentava a sua filha, a mãe de Tereza teve um novo relacionamento e foi morar com essa pessoa. A adolescente, que estava com 13 anos, não aceitou morar com o casal, pois tinha medo, e foi morar com a avó.

Na nova casa, o marido da avó aproveitava para acordar Tereza, todos os dias pela manhã, passando as mãos pelo seu corpo. 

Esse homem chegou a dizer para a adolescente que já tinha feito a mesma coisa com a filha de uma namorada, pois essa menina estava "provocando" ele. Para complementar, disse à Tereza que essa menina poderia até contar tudo para a mãe dela, "mas que a culpada era ela".

Com 14 anos, Tereza saiu da casa da avó e foi morar com o pai, em outra cidade. 


Consequências psicológicas

Hoje, quase dez anos depois de sair da casa da avó, a vítima faz terapia para "trabalhar" os episódios traumáticos da infância.

Os estupros afetaram muito a relação de Tereza com outras pessoas e com a sua própria autoestima.

Ela foi uma adolescente insegura, que fazia de tudo para agradar e ainda hoje tem receio de se posicionar ou colocar a sua opinião em qualquer assunto. Ela acha que quando der a sua opinião pode provocar brigas e desentendimentos.

"Isso me atrapalha no trabalho, pois trabalho em uma instituição e minha função exige que eu me posicione em alguns momentos. Mas, esses são só alguns exemplos, que estão sendo trabalhados [em terapia] e mudados".

Ninguém da família sabe o que Tereza passou, "só alguns amigos mais íntimos".



**Tereza é um nome fictício para T. S., que prefere manter o anonimato.








domingo, 3 de julho de 2016

Como - e por que - Jéssica resolveu criar uma página sobre abuso sexual

Jéssica decidiu criar a página Abuso e Violência "NÃO" no início do ano, quando procurava ajuda.  Imagem:acervo pessoal



Se você já teve curiosidade ou precisou de um "socorro" e pesquisou por páginas sobre abuso e violência sexual no Facebook, é muito provável que tenha se deparado com a página Abuso e Violência "NÃO", que é a maior sobre o tema. Com mais de 49 mil seguidores, a página atualiza e informa pessoas que estão interessadas em ler notícias e ver informações sobre abuso sexual, além de receber centenas de relatos de estupro. No entanto, poucas pessoas conhecem a história de quem está por trás de todos esses posts.

Quem criou e administra a página é a estudante Jéssica Camila Rosa de Oliveira, de 19 anos. A paulista, que mora em Diadema, resolveu dar início ao projeto porque queria encontrar uma forma de lidar com a própria dor. 

Em entrevista ao #VamosFazerUmEscândalo, ela explica como teve a ideia e o que a motivou. 


Acompanhe:


Ágatha Santos: Queria que você contasse um pouco sobre quando e como resolveu criar a página... Como é essa experiência?

Jéssica: Foi assim, eu resolvi fazer a página no começo do ano. Foi quando eu tinha revelado para a minha família inteira sobre o que eu tinha passado, do abuso, e aí eu entrei numa depressão profunda porque eu criei uma expectativa de ter apoio da minha família e foi totalmente diferente. O único apoio que eu tive foi da minha prima. Eu saí de casa, tive várias desavenças com a minha mãe e aí eu fui morar com a minha prima. Eu tentei vários suicídios e nunca dava certo... Aí eu comecei a procurar ajuda, que foi quando eu comecei a fazer terapia e tive a ideia de ocupar a minha dor. Mas, eu pensava: "como vou ocupar a minha dor?". Então, eu comecei a procurar páginas... Na verdade, procurei pra ter ajuda, pra ver se eu encontrava alguma ajuda e aí eu achei um monte de páginas, mas nenhuma foi do jeito que eu queria. Então eu pensei "vou criar a página", mas não pensei que ia progredir tanto o quanto está agora. Acho que foi uma publicação que a gente fez das imagens das crianças, dos relatos das crianças e aquilo começou a crescer. Em menos de duas semanas, a página estourou. Eu fiz no intuito de ajudar outras pessoas, eu queria tapear a minha dor abraçando a dor de outras pessoas. Pra mim, isso é muito importante porque hoje, todas as vezes que eu entro na página, eu peço para que eu esteja com o coração aberto para abraçar a dor de outras pessoas. Eu percebo que muitas pessoas não têm ajuda alguma, nem da família, nem de terapia, nem nada.


A: E como que foi essa parte da sua vida que você teve que sair de casa, quando teve desavenças com a sua mãe ao contar sobre o abuso que sofreu etc.?

J: Então, é... foi difícil, sabe? Foi uma fase assim que, pra mim, eu fiquei sem chão... assim, eu não via mais sentido na vida porque eu resolvi contar pra minha mãe para que ela pudesse resolver pra mim, mas foi totalmente diferente, sabe? Eu... não sabia o que fazer porque ela é a minha mãe e eu tinha que contar pra ela e ela queria que ficasse só entre a gente. Só entre eu e ela... E eu não queria isso, então ela começou a desconfiar, ela queria que eu provasse, sabe, porque mesmo ela tendo se separado dele, ela ainda tinha contato com ele. Então, querendo ou não, ela gostava dele ainda. Então, quando ela ficou sabendo foi um choque pra ela e aí eu falei que eu ia contar para a minha família inteira, que eu não ia poupar ninguém porque ele ainda tinha contato com a minha família e eu ia ficar, sabe... muito mal se acontecesse mais alguma coisa e eu não ter contado pra ninguém. E aí a minha mãe não aceitou, ela não falou comigo, no outro dia quando eu contei... ela ficou me evitando e foi aí que eu decidi sair da casa dela e fui morar com a minha prima. Na verdade, a minha mãe queria me mandar embora, queria me mandar para outra cidade e eu não aceitei também. Eu não aceitei ficar em silência, permanecer em silêncio, porque eu acho que se eu ficasse em silêncio não ia adiantar nada. Aí eu resolvi morar com a minha prima e a minha mãe também não aceitou. Ela queria que eu ficasse sozinha e achou que a minha vida tinha que parar, que eu ia, sei lá, me envolver com drogas. Na cabeça dela foi isso, ela achou que eu ia me perder totalmente igual os outros casos que ela vê. Então, foi uma fase difícil. Mas, eu recebi muita ajuda das minhas amigas. Eu tenho duas, a Ju e a Elisa, que me ajudaram muito, muito, nessa fase da minha vida. Mesmo a gente distante, foi essencial pra mim porque eu comecei a me espelhar nelas. Então eu pensei, se eu recebo tanta ajuda, por que não posso ajudar outras pessoas também?


A: Pelo que entendi, o seu agressor foi o seu próprio padrasto, é isso? Qual é a sua história de abuso, Jéssica?

J: Sim, foi ele. Assim, quando eu era menorzinha, eu morava com a minha avó. Morei com a minha avó até os seis anos. Aí, quando eu completei sete anos, eu me lembro que fui morar com a minha mãe, eu vim morar com ela aqui em São Paulo, e ela já tinha se casado com ele. No começo, assim, pra mim, foi legal, sabe, tipo... eu pensei comigo, pô, vou ter um pai... e aí, com o tempo, as coisas começaram a mudar. A minha mãe trabalhava muito e então ela nunca teve tempo de poder me notar ou pensar em mim, sabe? E aí ele começou a ficar sozinho com a gente e começou a abusar de mim. E aí... sempre ocorria... bom... eu não me recordo quando foi a primeira vez, quando aconteceu, mas foram diversas vezes. Aí a minha mãe se separou dele e, mesmo assim, continuava acontecendo. Porque assim, pelo fato de a minha mãe gostar dele, minha mãe vê ele como nosso pai, então a gente tinha contato com ele. E a minha mãe entrou em outro relacionamento... mas, ainda continuava tendo contato com ele, gostava dele, saía com ele. Então, ele sempre teve contato com a minha vida e eu nunca pude falar nada porque a minha mãe... ela pensa "a Jéssica faz o que quer, na hora que quer", então o que eu não podia era desrespeitar ele. Pra minha mãe, sabe, eu não poderia desrespeitar o cara que me criou. E eu pensava, o que que eu vou explicar pra ela? Por que que eu não gosto dele? Por que eu não gosto de estar do lado dele, sabe? E ele sempre me ameaçava... Ele falava assim "ah, se você contar, eu vou fazer a sua mãe não acreditar, eu fazer todo mundo não acreditar, eu vou falar que você queria". Então, foi por isso... assim... que esse é um dos motivos que eu nunca contei pra minha mãe. Ou seja, o abuso começou dos meus sete e foi até os meus quinze anos, que foi quando a minha mãe se separou dele. Mas, assim... até os meus quinze anos era frequente, era todo final de semana que eu ficava sozinha, ele abusava de mim. E aí quando a minha mãe se separou dele, a gente foi morar em outra cidade e, então, era raro. Mas, chegava nas férias e eu tinha que ficar com ele e era quando acontecia e aí foi diminuindo aos poucos. Então, chegou um tempo que eu não tive mais contato com ele ou ter que fazer alguma coisa com ele... no ano novo, do ano passado, foi a última vez. Eu fui pra casa... a gente tava em família e ele chegou... assim... porque ele tinha contato, mesmo com a minha mãe sendo casada, ele tinha contato com a gente. Ele chegou lá e foi quando ele tentou abusar de mim e aí eu decidi... não aconteceu nada, mas eu decidi que eu não poderia aguentar mais e não contei pra ninguém na hora. Eu fui conseguir contar quando eu conversei muito com a minha amiga. Conversei com ela e foi quando eu decidi contar pra minha família inteira o que estava acontecendo. E ele negou tudo. Assim... na verdade, ele não falou nada, sabe? Ele ficou mais na dele e fugiu... sumiu... e nem falou nem que sim e nem que não. Então, pra minha mãe, surgiu aquela dúvida: será que isso aconteceu? Tipo... você tinha contato com ele, você conversava com ele, como isso poderia ter acontecido, entendeu? Então, isso, pra ela foi... tipo... uma dúvida enorme. E foi aí que a gente entrou numa discussão, de uma não falar com a outra e, até então.. até hoje... minha mãe não sabe de detalhes porque foi, assim, uma coisa que eu decidi que eu não queria contar mais pra ela. Porque ela não soube lidar com essa história quando eu contei inicialmente, então ela não ia saber lidar com os detalhes, sabe? Então, eu preferi ficar na minha.


A: Entendi. E até hoje você tem essa relação distante com a sua mãe? Como é?

J: Não. Hoje a gente não tem um relacionamento muito amigável, mas, a gente... eu decidi que ela vai ter que me aceitar. Eu falei pra ela que ela vai ter que me aceitar, que o jeito que eu sou, o que eu sou hoje e, do mesmo jeito que eu aceito ela como a minha mãe, ela tem que me aceitar! Porque eu vou gritar, sim. Eu vou falar e eu vou ajudar várias outras pessoas e eu vou ajudar quem eu puder e ela vai ter que aceitar isso. Ela vai ter que aceitar eu falar de uma coisa que eu vivi. Então, ela tá.. assim.. aprendendo.. sabe? Ela me afronta muito com algumas palavras... é... assim... uma palavra que ela falou pra mim e que eu nunca, nunca, vou esquecer foi... a gente, numa discussão nossa, ela falou pra mim "é mais fácil ele te dar um presente e você sorrir, do que eu vir e conversar com você". Então... foi uma frase... assim... que... eu estar na frente da minha mãe é muito difícil. Ela me vê como uma rival dela, como a amante do amante dela... né... no caso... porque ela já estava em outro relacionamento... mas, ela me via dessa forma. Hoje, a gente tem um convívio assim... né... não muito amigável, mas converso com ela, normal, e é isso...


A: Quando você diz que contou sobre os abusos para todos da sua família... ninguém pensou em denunciar ou fazer alguma coisa a respeito... nada?

J: Eles até pensaram, mas, como a minha mãe começou a dizer que eu não tinha provas, que eu precisava ter alguma prova para poder mostrar que foi verdade, eu desisti. Não quis ir atrás porque seria a minha palavra contra a dele! Vi que minha vida iria mudar, nessa época eu já estava com a página e comecei a ver um monte de relatos em que as pessoas foram atrás da justiça e, que mesmo com provas, não fizeram nada em relação. Era sempre mais uma queixa aberta que seria esquecida ali. Então, quando vi que não tinha como provar, desisti e não quis levar a diante. Mas esse foi o pior erro que eu fiz. Pelo fato de eu não querer fazer denúncia, minha mãe começou a pensar que eu estava defendendo ele.


A: Não tinha muito o que fazer...

J: Não.


A: Voltando a falar sobre a página, Jéssica, quanto tempo você dedica à ela?

J: Assim, no início eu passava a maior parte do meu tempo lá, tentando responder todas as pessoas que falavam comigo. Tem outras duas administradoras, também, além de mim. Mas, comecei a não me sentir bem ficando ali 24 horas, daí comecei a dividir o meu tempo. Hoje, entro todos os dias na página e fico por lá umas 2, 3 horas respondendo as pessoas.


A: Já são quase 50 mil pessoas que curtiram a página. Você acha que a maioria do público são as próprias vítimas de abuso sexual?

J: Sim, acredito que sim! Pode até não ter sido abusado sexualmente, mas, de alguma outra forma foi ou conhece alguém próximo que foi.


A: Você tem ideia de quantas pessoas pedem ajuda por semana na página?

J: Assim, noção de quantas pessoas eu não tenho porque, como a Fernanda [a outra administradora] também responde as pessoas, eu não faço ideia. Até porque são muitas mensagens, entendeu? Então, a gente vai respondendo... Eu nunca contei quantas pessoas, mas é bastante. Todos os dias tem mensagem.